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sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Budismo Esotérico (Mikkyo) - Parte 1 (atualizado em 02/12/2013)

O termo Mikkyō pode ser traduzido como ensino secreto, ou Budismo secreto e refere-se a parte das práticas do Budismo T’ien-t’ai (ou Tiantai), introduzidas no Japão por Saichō, também conhecido como Dengyō Daishi no século IX. Contemporâneo de Kūkai (ou Kobō Daishi), que por sua vez desenvolveu a tradição Shingon. É uma síntese de doutrinas, filosofias, rituais e técnicas de meditação que, combinadas com o pensamento Mahayana formam um todo coerente e não um "tipo de Budismo" separado. A essa convergência dá-se também o nome de Budismo esotérico.

O uso do prefixo eso visa se opor a exo, justamente devido a determinados sutras (textos contendo ensinamentos) possuírem dois focos de análise. Um superficial (exo, ou externo) de acesso direto e outro sutil, oculto (eso, ou interno), que apenas deve ser introduzido após a compreensão aprofundada e clara, depois da prática bem estabelecida de doutrinas e seus desdobramentos. Entenda que não existe "conhecimento esotérico" sem uma sólida base exotérica que o sustente. O risco de realizar tal tarefa sem preparo, por conta própria ou na ausência de um mestre que tenha realmente internalizado, compreendido, completado o entendimento das doutrinas implica na possibilidade de creditar às práticas e rituais o caráter mágico, sobrenatural ou “divino” das experiências. As práticas esotéricas não conferem poderes mágicos de cura, de viajar pelo espaço ou de trazer boa sorte. Qualquer leigo que tenha lido meia dúzia de sutras sabe que o Budismo condena veementemente tais práticas como sendo vazias de significado e de lógica. No Sutra do Lótus consta, “... o Bodhisattva (...) não serve, não honra, não reverencia (...) os que conhecem os lokayatamantra (...) nem com eles estabelece relações.” (cap. XIII) Lokayatamantra, algo como “mantras mundanos”, ilustra exatamente a ideia de que através de preces, algum tipo de benefício seria obtido, como boa sorte, saúde ou riquezas. Assim, fica claro que no surgimento de termos que venham a sugerir esse tipo de ideia, mantenha em mente que os textos fazem uso de uma linguagem altamente poética e simbólica para descrever sua mensagem, algo que era comum nos textos antigos já que a ideia de narrativa histórica fatual é posterior.

O mantra, outro termo extremamente prostituído nos últimos dois séculos, é de importância central para o Budismo esotérico e também relevante ao pensamento Mahayana de uma forma geral. Mantras são um grupo de palavras, única palavra ou letra que é associada diretamente a um ou vários ensinamentos ou ideias. Ou seja, uma palavra ou som que é ligado a determinado estado mental ou tipo de insight. Sendo assim, fora da compreensão do seu significado ou do tipo de experiência relacionada, recitar uma frase qualquer, seja Namu Myōhō Renge Kyō, Hare Krishna, Ave Maria ou Shimbalaiê, dá no mesmo. As palavras não possuem significado intrínseco, são desprovidas de essência, mas isso é outro assunto...

Na tradição esotérica japonesa os principais sutras são o Dainichi-kyō e o Kongōchō-gyō, escritos provavelmente na primeira metade do século VII na Índia e contêm talvez a primeira representação organizada das doutrinas e práticas utilizadas no Mikkyō. Esses sutras representam o período médio do desenvolvimento do Budismo esotérico. Contudo, há uma diferença importante entre a tradição T’ien-t’ai (jap. Tendai) e a Shingon. Para o esoterismo Tendai, todas as práticas e ensinos devem estar de acordo com o Sutra do Lótus e o Sutra Mahayana do Nirvana, num sistema lógico chamado em japonês de taimitsu considerando as práticas esotéricas não como uma necessidade ou obrigação, sendo adequada para uns e inadequada para outros. No caso da tradição Shingon, os ensinos esotéricos são considerados um tipo separado (e superior) de Budismo e os sistema de classificação chamado de tōmitsu, considera os dois sutras esotéricos acima citados como superiores a todos os sutras existentes e de acordo com os ensinamentos de Kūkai, o Sutra Avatamsaka também é superior aos sutras Lótus e Nirvana. Além disso, para a tradição Tendai ainda há um terceiro sutra esotérico principal, o Susiddhikara-Sutra (jap. Soshitsuji-Kyō). Vale considerar que Kūkai classificou o Sutra Avatamsaka como superior para agradar as seitas budistas em Nara, que eram influentes no período.

Outras formas de práticas e doutrinas esotéricas ainda se desenvolveram até o século XIII espalhando-se pela Ásia Central, Ceilão, Mongólia, dentre outros locais, sendo muito importantes para o Budismo Tibetano. Em muitos lugares essas tradições declinaram a ponto de desaparecer completamente como veremos em frente.

2. Da Índia à China

As origens dos rituais esotéricos podem ser traçadas até cerca da metade do terceiro ou segundo milênio AEC. Os povos pré-arianos possuíam práticas de adoração a numerosos deuses, provavelmente contavam com algum tipo de yoga religiosa e determinados tipos de encantamentos e preces às quais atribuíam poderes mágicos para agradar a tais divindades e receber delas favores. Entre 1500 e 1200 AEC, os arianos invadiram a Índia e entre suas práticas e rituais religiosos também estava presente a ideia de encantamentos, orações mágicas em prol do favor de deuses invisíveis ou representados pelas forças da natureza, universo, etc.

Ritual do Fogo realizado no Templo Kongozan Ichijoji, São Paulo
O Rig Veda, a primeira grande obra literária desse povo, seguida de mais três Vedas desenvolvidos nos cinco séculos seguintes mostram que no Bramanismo, sua religião, estava contida as bases do ritual budista esotérico. O ritual do fogo, por exemplo, um tipo de rito milenar encontrado em variações por quase todo o mundo, foi adaptado ao pensamento e propósitos budistas, além da inclusão de várias deidades contidas no Rig Veda ao grupo de divindades e simbologias budistas como Indra (jap. Taishaku-ten), Varuna (Sui-ten), Agni (Ka-ten) e o próprio Buda Universal Dainichi-nyorai (literalmente, Buda Grande Sol ou em sânscrito Mahāvairocana) pode ter-se originado de uma deidade menor presente nos Vedas, um Asura (jap. Ashura) que por sua vez, parece relacionar-se com o deus da luz no Zoroastrismo, Ahura Mazda.

Durante o primeiro milênio AEC, textos produzidos como o Atharva Veda, mostram o desenvolvimento de uma sociedade que dava extrema importância a ritos e encantamentos, em sua maioria voltados para curas, alongar a vida, sucesso nas colheitas, vitória contra inimigos, etc. Essas orações mágicas eram chamadas em sânscrito de mantras, classificando-se nos Vedas em categorias de acordo com seus propósitos. Classificações semelhantes acabaram sendo feitas também posteriormente nos sutras esotéricos budistas.

Com o crescimento e enriquecimento da classe mercante na Índia entre os séculos VI e V AEC, a sensação de necessidade de rituais mágicos declinou, novas filosofias tomaram corpo associando tais ritos com superstição de culturas rurais ou de classes sociais inferiores. Dentre os novos modos de pensar estava o Budismo que considerava tais práticas voltadas para obtenção de benefícios seculares, boa sorte, ou qualquer tipo de vantagem, uma ilusão que deveria ser abandonada, já que eram falsas e a verdadeira meta era a liberação através do esvaziamento do eu. Ou seja, desde seus primórdios, o pensamento budista nega claramente a obtenção de bênçãos, benefícios ou como queiram chamar, através de rituais, rezas ou qualquer outra prática dita mágica, mística ou sobrenatural.

Com a expansão indiana sob a mão do Imperador budista Ashoka por volta do século III AEC, o contato com novas culturas trouxe e levou influências do pensamento budista que também atravessou a Pérsia alcançando o Mediterrâneo. Pode-se notar evidências dessa troca tomando como exemplo o texto “Perguntas do Rei Milinda” (Milinda Panha), na verdade Menandro, um rei grego. Desses contatos e desse fervilhar filosófico desabrocha o que conhecemos hoje como Budismo Mahayana que posteriormente alcança a China na dinastia Han (25-220 EC).

continua....